O Brasil envelhece e Gil Rejuvenesce
Foi com essa sensação que sai do Circo Voador lotado na última sexta, 02 de fevereiro, na gravação do DVD Refavela 40. Pra quem se liga em sincronicidades, era o dia de Yemanjá e da morte de Chico Science. A energia da cultura negra estava no ar latente. Ao chegar na Lona fui recebido pela batida do Afoxé Filhos de Gandhi e me peguei pensando em como os ritmos afro brasileiros nos elevam pra uma atmosfera diferenciada, rebuscando a consciência sobre nossas raízes. Ao ouvir aquelas levadas fui interiorizando aos poucos o rito que estava se iniciando. Não era uma noite de curtição e entretenimento apenas. O inconsciente coletivo ali parecia vibrar na busca de uma conexão com algo maior. Sutilmente pairava no ar um respeito que trazia leveza e nos devolvia o sentido da relação homem, cultura e seu poder de transformação social. O público estava entregue e dando flores aos vivos.
40 anos depois, o místicko álbum da “trilogia Re” foi revisitado ao vivo unindo gerações, amigos e familiares num show onde o novo e o velho naturalmente trocavam de lugar. O idealizador do projeto Bem Gil reuniu com maestria um time da nova geração para transpor no palco aquela mistura africana que integrou a Juju Music com a batida funk do movimento Black Rio. Tudo em sintonia com a magia do reggae jamaicano que Bob Marley apresentava naquele tempo com “Exodus”, contemporâneo do “Refavela”. Com Bem Gil (guitarra), Bruno Di Lullo (baixo), Domenico Lancellotti, Thomas Harres (bateria e percussão), Thiagô de Oliveira, Mateus Aleluia (sopros), Nara Gil e Ana Cláudia Lomelino (vocais) ao lado dos músicos que gravaram os takes originais de percussão e contrabaixo, Djalma Corrêa e Rubão Sabino, o time estava montado pra receber as participações da noite e celebrar mais esse legado da música brasileira.
A cantora carioca Maíra Freitas entrou grávida de barrigão abençoando o tributo e empoderada com os versos de Ilê Ayê. Sua destreza e bom gosto no piano embalou toda a apresentação. Moreno Velosochega interpretando com delicadeza e elegância Aqui e Agora e mostra que a direção artística e musical estava totalmente antenada com cada nuance. O melhor lugar do mundo era ali, naquele momento, também conhecido como o agora. Mestrinho se juntou a turma com seu acordeon envenenado e sorriso solto, iluminando o caminho que seguiu com histórias curiosas, homenagens e dedicatórias. Momentos emocionantes que saudavam Yemanjá, causos sobre a importância do Balafon no processo de criação das texturas sonoras, e a dedicatória a Luiz Melodia e Wilson das Neves, revelou a profundidade daquele encontro pautado no carinho evidente que todos ali tinham por essa obra. Anelis Assumpção foi um show a parte. Presença poderosa e a beira de lançar seu novo álbum, ela recebeu o homenageado da noite que entra de surpresa, todo de branco e entoando Jamming de Bob.
Naquele momento a energia virou de vez e ficou claro pelo olhar de todos os presentes que Gilberto Gil tornou-se Atemporal. Com a cabecinha branca e ainda se recuperando de uma gripe, o axé dendê que ele carrega saía pelos poros em cada palavra dita com a propriedade de quem tem fé em Deus, em si e em nós. Sua relação com o movimento negro é existencial, sagrada e se faz extremamente necessária no atual momento em que vivemos essa crise de valores. Gil abre a gira girando com a serenidade de quem vive o que canta. Histórias sobre compor enquanto estava preso e a saudosa homenagem ao pai de Rubens, João Sabino, revelam uma narrativa que não perde em nenhum momento o tom de gratidão para com a vida. Pra mim que sou capixaba de coração e admirador da terra de Rubem Braga e Sergio Sampaio, ouvir Gil cantando sobre o sol nascer em Cachoeiro de Itapemirim também foi bem especial. Na memória ele relembra expressões baianas como Eu sou eu Nicuri é o Diabo, e faz questão de destacar a importância da relação que existia ali entre familiares e parceiros de longa data. Perceber seus filhos cantando, tocando e produzindo ao lado dos filhos de Martinho da Vila, Caetano Veloso e Itamar Assumpção me atentaram a uma riqueza ímpar que aquele registro carregaria.
Gil já é bisavô e foi Ministro. Decretou a capoeira como Patrimônio Imaterial e teve a ousadia de se embrenhar em esferas políticas que os artistas temem em se aproximar, com medo de perder algo que ele mesmo nunca perdeu: a relação com o divino. O coro Ole olé olé olá, Lula Lula tomando conta da platéia foi inevitável. “Hoje a democracia brasileira vive momentos pesados…” ele comenta com a classe que lhe é peculiar e segue seu caminho dosando arte e engajamento. O amor a música e a família pareciam conduzir cada gesto que ele emitia e isso o tornava cada vez mais gigante espiritualmente ao vivo. Nos momentos finais falou do convite que recebera pra fazer uma canção pra um personagem e sobre sua resposta de fazer não só para um, mas pra história inteira, e emendou Sítio do Pica Pau Amarelo. Apresentou sua filha cantando, falou dos estivadores das docas de Salvador que vieram pro Rio e da luta pela libertação dos povos. Gil não é pai de um, é de muitos e assim evocou, além de seus filhos, o retorno dos de Gandhi pra fechar o show com a Patuscada. E enquanto o nosso jovem país apresenta retrocessos com sintomas de envelhecimento e intolerância, aquele velho pai se mostra um garoto que já não precisa mais ter medo da morte. Em vida eternizou-se vivendo sem pé nem cabeça e pensando sobre o além. Sua semente plantada há 40 anos virou árvore, frutificou e quem sabe num verdadeiro ato seu, assistimos um presidente dando posse ao sucessor. Gil floresce ancestral, presente e futurista.